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A Terra Indígena (TI) Tikuna Umariaçu é considerada uma das mais populosas do povo Tikuna, com cerca de 8 mil pessoas. Localizada à margem esquerda do rio Solimões, faz parte da cidade de Tabatinga, tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru. A TI se divide nas comunidades Umariaçu I e Umariaçu II, localizadas na área rural de Tabatinga, mas próximas à zona urbana. O acesso é feito por estradas de barro e pouco asfalto e, quando chove, tudo fica coberto de barro. Casas de madeira dividem o espaço das ruas com outras de alvenaria.
Lá, os moradores enfrentam riscos de eventos hidrogeológicos, como erosões, inundações e alagamentos, com particularidades de quem depende da natureza para sobreviver. Por viverem de atividades como agricultura, pesca e extrativismo, mudanças no ambiente impactam diretamente o cotidiano das famílias. Isso porque o território está localizado em uma região de várzea e o solo às margens do rio Solimões é naturalmente instável e sujeito a inundações sazonais. Além disso, o histórico de expansão das moradias sem planejamento adequado fez com que muitas famílias passassem a viver em áreas de encosta e beira de rio, ampliando a exposição da comunidade aos riscos.
Tabatinga (AM) contraria a média da Amazônia: lá, 65% da população em risco é indígena enquanto na região amazônica o índice é de apenas 0,6%. Os dados fazem parte de uma análise exclusiva realizada pela InfoAmazonia a partir de informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do mapeamento do Serviço Geológico do Brasil (SGB), sobre as áreas de risco a eventos hidrogeológicos.
Esta é a terceira reportagem da série Vulneráveis do Clima, uma parceria entre a InfoAmazonia e o Pulso Amazônico (AM), que mapeou quem são os mais expostos a desastres climáticos na região amazônica.
A terceira cidade mais indígena do país
No extremo oeste do Amazonas, Tabatinga é a terceira cidade com maior população indígena do país, com 34,5 mil pessoas, de acordo com o Censo de 2022 do IBGE. A TI Umariaçu é um dos lugares com mais áreas de risco da cidade, segundo o monitoramento feito pelo SGB. Os indígenas da comunidade vivem sob risco de terem suas casas de madeira engolidas pelo barranco, ou perderem suas vidas durante uma chuva forte com o deslizamento de terras e residências causado por um fenômeno natural chamado terras caídas, um processo erosivo agravado pelo clima extremo e pela instabilidade do solo.
O perfil da vulnerabilidade a eventos climáticos em Tabatinga está relacionado à forte concentração populacional indígena, pressão urbana crescente e uma localização geológica frágil, marcada pela combinação de solos instáveis, presença de igarapés e erosões.
Na única via de acesso para as comunidades Umariaçu I e II, o agricultor e pescador Alessandro, que preferiu não dizer seu sobrenome, viu parte de seu terreno ser engolido pelo rio. Agora, está com sua casa a menos de cinco metros do nível da água por conta da erosão fluvial da região.
O local fica em uma área de 1,8 quilômetro mapeada há nove anos pelo SGB. Os pesquisadores identificam terrenos com encostas e barrancos e, em seguida, analisam a possibilidade de ocorrência de eventos climáticos. O risco é classificado como alto — em áreas com barrancos e morros, onde existem casas que podem ser atingidas — ou muito alto — onde já ocorreram deslizamentos e rachaduras nos terrenos e há presença de habitações.
A área onde está a casa de Alessandro é considerada de alto risco. Sem respostas do poder público para lidar com o agravamento da situação, o indígena se viu obrigado a elaborar um plano B: construir outra casa na região central da comunidade Umariaçu I.
Segundo o pesquisador do SGB e especialista em geociências, Elton Andretta, o processo de erosão nas margens do rio ocorre, principalmente, por causa da força hidrodinâmica da água, que escava a lateral do terreno, especialmente no lado externo das curvas do rio.
"É ali que a base vai sendo desgastada. Quando vem a vazante e o nível da água baixa, o empuxo que ajudava a sustentar a parede da margem diminui. Isso influencia diretamente na estabilidade do solo. A margem pode desabar de forma repentina, caindo para dentro do rio, ou ir deslizando aos poucos, formando degraus, dependendo do tipo de sedimento presente na área", explica.
Segundo Andretta, o caso de Tabatinga traz particularidades importantes. Uma delas é a localização da comunidade indígena, situada em área de erosão. "Apesar de ser uma área um pouco mais reta do rio, o processo de erosão ainda é bastante intenso. A gente observa ali uma sequência de degraus altos formados pela sucessão de deslizamentos. É uma região de terras indígenas, e a população local convive diretamente com esses impactos, com o solo cedendo em diferentes pontos ao longo das margens", afirma.
Erosão faz indígenas se deslocarem para o centro da comunidade
A casa do agricultor Paulo Pinto está por um fio, com a cozinha praticamente pendurada em um paredão de terra. A pedido dele e de outros moradores da comunidade, o cacique Ezequiel Araújo, liderança indígena do Umariaçu I, fez várias solicitações de vistoria das residências à Defesa Civil de Tabatinga, mas nenhuma delas foi atendida pelo órgão.
"Enquanto eles são obrigados a ficar esperando, nós tentamos nos unir e resolver como podemos. A maioria das pessoas que moravam aqui pela beira tiveram que sair de suas casas e ir para o centro da comunidade, muitas perderam suas casas", declara a liderança.
A poucos metros da área onde Paulo Pinto reside, nos deparamos com a ponte de acesso a Comunidade Umariaçu II. Ela abre caminho por terra sob o igarapé de mesmo nome, com estrutura precária. Em novembro do ano passado, parte da estrutura da estrada de acesso à ponte sofreu erosão, ocasionando dificuldades de carros, motos e pedestres para transitar pela ponte ao acessar a comunidade. No dia 7 de novembro, o Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Solimões (DSEI ARS), emitiu um informe de risco relatando instabilidade da estrutura que liga as comunidades Umariaçu I e II, agravada pelas características do solo local.
"A região apresenta solos argilosos que, quando saturados pelas chuvas intensas, tornam-se altamente suscetíveis à erosão, o que compromete a fundação da ponte (Silva et al., 2020)", aponta o informe técnico 005/2024 do DSEI Alto Solimões. O documento também alerta para a falta de manutenção adequada, o que eleva o risco de desabamento e afeta diretamente o transporte de pacientes das comunidades do Umariaçu para os serviços de saúde de Tabatinga, como hospitais e Unidades Básicas de Saúde (UBS).
Crise de abastecimento de água potável
A erosão não é o único problema. O acesso à água tratada também é limitado. Segundo o Sistema de Informações de Águas Subterrâneas (Siagas), uma ferramenta do SGB para monitorar os lençóis freáticos do Brasil, existem quatro poços registrados na TI Umariaçu, mas apenas dois funcionam, um em cada comunidade. O cacique Ezequiel Araújo explica que o sistema de extração de água do subsolo não consegue levar água tratada para as 402 casas presentes no Umariaçu I.
Ao lado da casa de Alessandro, a agricultora Leonora Cândido, de 63 anos, vivencia uma situação delicada, com um barranco aparente de cerca de 10 metros, à beira do Alto Solimões. Moradora da comunidade há 30 anos, ela relata que, além do medo de ter a casa tragada pelo rio, está sem água tratada há uma semana.
"A água só vem uma vez na semana por conta do poço da comunidade, mas a bomba não tem força o suficiente. Então, ela vem bem fraca. Agora estamos assim, tendo que lidar com o resto da semana com o pouco de água que tem na caixa d’água", conta.
Em Tabatinga, os poços que abastecem as comunidades são rasos — a maioria com menos de 35 metros de profundidade — por conta das condições geológicas da região. O solo argiloso e o lençol freático elevado limitam as perfurações, o que reduz o volume de água disponível e faz com que cada poço atenda, em média, de cinco a vinte casas. Em contraste, cidades como Manaus e Boa Vista exigem poços profundos, com captação entre 100 e 150 metros.
Essa mesma característica do solo em Tabatinga que facilita a captação de água em níveis superficiais também representa um risco. A alta saturação de água nas camadas superiores, típica de solos argilosos e pouco permeáveis, pode comprometer a estabilidade do terreno e favorecer deslizamentos, especialmente em áreas inclinadas e sem infraestrutura adequada.
A cerca de um quilômetro de distância do posto de segurança comunitária do Umariaçu II, o cacique Eder Venâncio mostra que a única caixa d’água da comunidade foi condenada pela Defesa Civil de Tabatinga, por risco de desabamento. No centro, é possível observar diversas rachaduras e infiltrações, com vazamento na estrutura.
Perda de roças e insegurança alimentar
Na seca, a comunidade de Umariaçu convive com o risco de erosões e deslizamentos. Na cheia, o temor muda: são os alagamentos que colocam em risco as plantações e a segurança das famílias.
Neste ano, o avanço das águas foi mais rápido que o habitual. Em menos de dois meses, o nível do rio chegou a 12,57 metros, de acordo com a Praticagem dos Rios Ocidentais da Amazônia (Proa). Agricultores e pescadores relatam que não houve tempo para salvar as roças. A água invadiu as áreas de cultivo e destruiu a produção, comprometendo a principal fonte de alimentação e renda da comunidade.
A perda das plantações na zona rural reforçou a dependência da comunidade por outras formas de geração de renda, como a venda de produtos agrícolas na feira Tikuna, dentro do próprio território. Mesmo com as dificuldades, os agricultores seguem levando para o espaço o que conseguem produzir, com preços ajustados para cobrir os custos do transporte e garantir o mínimo de retorno financeiro.
Um dos roçados mais afetados da comunidade é o de Francisco Guedes Emílio, de 63 anos, que perdeu uma plantação com 2 mil bananeiras que venderia para seu sustento, junto com sua mulher. "Fiz a roça mais para cima, porque achei que a água não ia chegar até aqui, mas veio rápido demais e acabei perdendo toda a plantação", conta.
Emílio vende a palma da banana a dez reais e o cacho a 50 reais, na beira da ponte de acesso a comunidade. O dinheiro arrecadado vai para o sustento da sua casa, onde mora com a esposa. Além das bananas, houve a perda de 350 plantações de mandioca, macaxeira, mamão e outras frutas, que estão embaixo d’água.
Sem a plantação, ele defende o envio de cestas básicas para seu sustento diário. O agricultor não está recebendo auxílio financeiro do município ou estado e busca novas formas de conseguir dinheiro, migrando da agricultura para a pesca e passando dias em busca de peixes para venda.
"Levou uns dois meses para conseguir plantar tudo junto com meu filho e agora não consigo aproveitar nada. Está tudo no fundo. É difícil na seca também porque levamos 40 minutos até a praia para conseguir levar as frutas para vender na cidade", declara.
Enquanto a água avança pelas margens e o solo cede a cada nova seca, os moradores da TI Umariaçu continuam tentando, por conta própria, driblar os riscos e as perdas. Entre a ameaça de deslizamentos, a falta de água potável e a insegurança alimentar, o cotidiano segue marcado pela ausência de ações estruturantes.
Procurada, a Defesa Civil de Tabatinga não respondeu aos pedidos de entrevista para saber quais ações estão sendo feitas para garantir a segurança nestas comunidades indígenas até o fechamento desta reportagem. Nas redes sociais, o órgão publicou que realizou uma visita técnica realizada em maio deste ano, com o objetivo de atualizar o Plano Municipal de Redução de Risco (PMRR), que ajuda a prefeitura a mapear áreas vulneráveis e a planejar ações para proteger a população de alagamentos, deslizamentos e outros desastres.
Já o Plano de Contingência Municipal, que define como a prefeitura e os órgãos de apoio devem agir em casos de desastres, foi realizado em 2024 pela Defesa Civil de Tabatinga e apontou os bairros Umariaçu I e II como áreas de potenciais riscos de deslizamento de terra e alagamentos. Ao todo, 78 famílias estão catalogadas nas áreas de monitoramento.
Enquanto a terra some aos poucos diante dos olhos dos moradores, as soluções emergenciais e de curto prazo não têm sido suficientes para conter os avanços da erosão e das perdas. O PMRR identifica o perigo, mas medidas estruturantes seguem pendentes. Entre barrancos que cedem, poços que não suprem e pontes que ameaçam desabar, a TI Umariaçu segue como um retrato da invisibilidade das populações indígenas nas políticas públicas de enfrentamento aos desastres ambientais.
Portal SGC