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A execução de decisões judiciais em áreas de conflito fundiário volta a evidenciar a complexa relação entre o dever constitucional de proteger terras indígenas e o direito adquirido de quem afirma ter recebido títulos emitidos por órgãos do próprio Estado. O episódio recente ocorrido em uma região do interior do país, que envolveu a retirada de famílias e a destruição de lavouras e moradias, reacende um debate que se repete há décadas: a fragilidade do processo de regularização fundiária no Brasil.
A questão não é nova. Em muitos casos, o poder público reconheceu ocupações e concedeu documentos de propriedade em locais que, anos depois, foram identificados como sobrepostos a terras tradicionalmente ocupadas. O resultado é um conflito em que ambos os lados apresentam razões legítimas. De um lado, comunidades indígenas reivindicam a integridade de territórios reconhecidos pela Constituição. De outro, produtores rurais alegam ter adquirido as terras de boa-fé, confiando na validade dos títulos expedidos pelo próprio Estado.
Essas situações expõem a falta de coerência administrativa e técnica na demarcação de limites territoriais. Divergências cartográficas, registros imprecisos e sucessivas alterações legais criaram um cenário de insegurança permanente. O Estado, que deveria ser o garantidor da legalidade, muitas vezes se transforma em origem do impasse. Quando duas políticas públicas — a de proteção indígena e a de colonização — colidem, o resultado é a perda de confiança nas instituições e o aumento das tensões locais.
Cumpre lembrar que a desintrusão é uma medida extrema, tomada apenas após longo processo judicial. Contudo, mesmo quando legalmente amparada, ela impõe efeitos profundos sobre a vida das pessoas e sobre a economia de regiões rurais. A destruição de casas, currais e plantações representa não apenas a execução de uma ordem, mas também a materialização de uma falha histórica de planejamento territorial.
É necessário que as decisões judiciais sejam acompanhadas de políticas públicas que deem suporte social e econômico aos atingidos. Retirar famílias sem oferecer alternativas de reassentamento ou compensação amplia o impacto humanitário e aprofunda o sentimento de injustiça. A execução fria da lei não basta; é preciso que o Estado atue de forma integrada, garantindo que a aplicação da norma não produza novos conflitos.
Ao mesmo tempo, a preservação das terras indígenas é dever que não pode ser relativizado. Essas áreas são essenciais para a proteção cultural e ambiental do país e devem ser respeitadas conforme determina a Constituição. O desafio está em harmonizar o direito à terra com o direito à posse tradicional, com base em perícias técnicas, diálogo institucional e transparência nos processos.
A reconciliação entre segurança jurídica e justiça social exige planejamento, atualização cadastral e compromisso político. Enquanto o Estado não corrigir suas próprias contradições, continuará a produzir vítimas de decisões legítimas, mas socialmente devastadoras. A solução passa por uma política fundiária moderna, capaz de evitar que erros administrativos se transformem em tragédias humanas.
Diário da Amazônia