A confusão entre o que é público e o privado é uma constante no Brasil. Do mesmo modo, é comum a confusão entre o que é público e o que não pertence a ninguém. Ruas, praças, calçadas e áreas públicas em geral ora são objeto de apropriação privada, ora tornam-se depósitos de lixo, cenários de condutas inadequadas e até mesmo de depredação.
O espaço público não é de ninguém em particular, mas de todos, sendo voltado à convivência. E exatamente por isso exige maior zelo, maior respeito, maior responsabilidade. No espaço privado, cada um pode agir segundo seus gostos e interesses, desde que não prejudique o próximo. Já no espaço público, ao contrário, o comportamento individual deve ser regulado pela lei, pelo decoro e pelo respeito mútuo, pois é ali que se materializa a vida civilizada.
Infelizmente, a realidade brasileira mostra o oposto. Muitas pessoas se comportam de maneira mais ordenada dentro de suas casas do que em ambientes coletivos. Pessoas jogam dejetos nas ruas, rios e mares, o que jamais ocorreria em suas casas. Tratam praças e parques como lixeiras abertas. Essa inversão revela uma mentalidade que enfraquece a própria noção de civilidade.
O desrespeito ao espaço público não é apenas uma falta de educação: é um ato predatório contra os demais. O indivíduo que age sem disciplina em área pública "rouba" da coletividade a possibilidade de convivência saudável, retira da cidade sua ordem e destrói o que deveria servir ao bem comum. Sob essa perspectiva, não é exagero afirmar que a indisciplina cotidiana se aproxima da lógica criminosa, pois ambos minam a confiança social e corroem a ordem necessária à vida comum.
Um exemplo prático da seriedade dessa questão foi a chamada teoria das janelas quebradas, aplicada com rigor em Nova York na década de 1990. A lógica era simples: se uma janela quebrada não é consertada, isso transmite a mensagem de que ninguém se importa, estimulando mais desordem. A administração pública, então, passou a coibir pequenas infrações — pichação, vandalismo, lixo nas ruas, ocupação irregular — entendendo que a tolerância ao pequeno desrespeito abre caminho para o grande crime. O resultado foi surpreendente: a melhoria da ordem urbana refletiu-se não apenas na limpeza e na segurança dos espaços públicos, mas também em uma expressiva redução dos índices de violência.
A filosofia política clássica já alertava para os riscos da desordem. Hobbes descreveu o estado de natureza como uma guerra de todos contra todos, um cenário em que não há lei senão a da força. A civilização, por meio do contrato social, surgiu justamente para superar essa condição, criando normas e estruturas de convivência que garantissem paz e cooperação. Se abandonamos o espaço público à "lei da selva", retrocedemos a esse estado primitivo, tornando-nos "tribos" isoladas em ambientes privados, mas hostis uns aos outros quando expostos ao convívio coletivo.
A Doutrina Social da Igreja igualmente ilumina também esse tema. O bem comum, ensina a tradição católica, não é a soma dos interesses individuais, mas aquilo que permite a todos e a cada um realizar-se mais plenamente. O cuidado com o espaço público é, portanto, uma exigência moral, não apenas uma conveniência urbana. É ali que se expressa a virtude da solidariedade e o reconhecimento da dignidade do próximo.
É preciso resgatar uma compreensão madura da vida em sociedade. Não basta cobrar do poder público. É necessário que cada cidadão, consciente de seus deveres, entenda que o espaço coletivo não é terra de ninguém, mas território do bem comum. Sem essa consciência, a cidade se degrada, a convivência se torna inviável e a ordem social cede espaço ao caos.
Se quisermos uma sociedade verdadeiramente civilizada, devemos começar pelo básico: tratar o espaço público com o mesmo respeito, ou até mais, com que tratamos nossas casas. Só assim superaremos a tentação de viver como estranhos em nossa própria terra, devolvendo à vida comum o valor da ordem, da lei e da responsabilidade compartilhada.
*Fernando Borges de Moraes - Advogado formado pela UFPR, especialista em Direito do Trabalho pela UNISC/ENA, pós-graduando em Filosofia Tomista pela Universidade Católica de Santa Catarina, sócio de Moraes & Horsth Advogados Associados e advogado do Sinetram - Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros do Amazonas há 20 anos.
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